23.11.25

La incredulidad de Santo Tomás, 1602. Caravaggio





PORT | ESP



PRÓLOGO

(A Noite do Mundo)


"A imagem é preservada no tesouro do espírito, na noite do espírito; ela é inconsciente, ou seja, não tem de ser exposta como um objecto diante da representação. O homem é essa noite, esse nada vazio que contém tudo na simplicidade dessa noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente à mente ou existe enquanto presente. É a noite, o interior da natureza, que existe aqui – puro si – em representações fantasmagóricas; é a noite em redor; aqui aparece de repente uma cabeça ensanguentada, ali outra silhueta branca, e elas desaparecem também subitamente. É essa noite que se descobre quando se olha um homem nos olhos –mergulhamos o nosso olhar numa noite que se torna terrível; é a noite do mundo que avança ao encontro de cada um".


Este texto fulminante de Hegel descreve a imaginação do Eu, ou deja, a acção que sucede à intuição (no sentido hegeliano deste termo: a imediatez da relação como os objectos.) Na imaginação, o objecto já não está presente como um ente, e o que resta desta presença – resto que só existe para o Eu – chama-se "imagem". Dois traços emergem então desta caracterização da força imaginativa, enquanto acção propriamente humana: o primeiro indica que a imaginação é uma noite, sendo o próprio homem definido como "a noite do mundo". Tal noite é o "ser para si", a noite que cai em pleno dia, onde as coisas só aparecem para desaparecer. O segundo traço diz respeito a estas aparições seguidas de desvanecimentos súbitos e revela o facto de que o desaparecimento, que pode ser interminável sem se tornar um objecto, é a causa do pavor ou da inquietude do Eu (a inquietude do negativo...). É por isso que Hegel afirma que podemos vislumbrar essa noite quando olhamos para um ser humano "nos olhos": não vemos então nenhum objecto representado, mas apenas o fundo inobjectivo e inobjectivável de todas as imagens (ou seja, muito precisamente, aquilo a que Jean-Luc Nancy chamará "o fundo das imagens"). Noite terrível ou pavorosa (furchtbar) porque o que vemos, nas profundezas de um olhar, é que a imaginação não tem fundo. Aí entrevemos um puro nada. (...)

Ora, a arte é imaginação e trabalho: a imagem que se torna um objecto requer um ser dotado de memória e, por tanto, de linguagem. Mas a arte tem a particularidade de não estabilizar o movimento do Eu (pensando primeiramente enquanto noite do desaparecimento). Uma vez postas no mundo, as coisas artísticas não deixam de ser depostas, de se retirar de mundo – ou melhor: a arte é a objectivação de ritmo da de-posição (em que consiste o próprio tempo). As imagens e os objectos de arte, na sua própia aparição, remetem constantemente para essa noite em que as coisas desaparecem (ou, como veremos, para a noite em que nada ainda tinha aparecido). (...)

E isto leva-me directamente a propor que em cada imagem (artística) se procura ver o fundo de um outro olhar e, mais exactamente, ser visto por um ausente (é a tal argumento, ou pelo menos a um argumento análogo, que Nancy nos conduz através do seu comentário sobre o exemplo heideggeriano da máscara mortuária, proposto por sua vez por Heidegger quando empreendeu uma análise do esquematismo kantiano). A arte propõe objectos que desfazem a objetividade do mundo. Neste sentido, a arte visual, e particularmente a pintura, é a imaginação –no sentido estrito: o pôr-em-imagem– da noite do mundo, tal como Hegel a pensava: uma abertura sem fundo e sem fim na intimidade do homem. (...) Luz que existe apenas para iluminar, não este ou aquele objecto, mas a escuridão onde tudo aparece e desaparece. Luz que nos faz ver, em suma, a origem de tudo – que não cessa de se retirar. Como proporei em "Deus occidens", a luz da arte (da pintura) é como uma luz de presença: através dela cuidamos da noite que nos habita ou, melhor, nos assombra. E parece que Caravaggio veio ao mundo não para destruir a pintura (como pretendia Poussin), mas para nos expor a noite que nós somos. A maioria das suas grandes pinturas encontra-se, de facto, banhada numa atmosfera nocturna que, claramente, não é natural: uma noite incandescente no seio da natureza e do mundo. (...)


O negro de Caravaggio, na medida em que é um indice da infinidade do Universo, imerge-nos numa representação inaudita do tempo – ou, para dizer novamente com Bataille, da "nulificação do tempo". (...)

A mística é a experiência do desconhecido e do incognoscível, a experiência de ver que há sempre algo incompreensível na existência de um todo, ou mesmo na existência do todo. E a mística que dá a ver este incompreensível – ou seja, a mística que é a arte – constitui a "potência de tirar imagens desta noite ou de deixá-las cair", para retomar e, talvez, desviar o sentido dos termos de Hegel. Posto em imagens pela luz da arte, o desconhecido permanece obscuro, infinito e, no entanto, visível. Caravaggio foi talvez o primeiro pintor a afrontar este negro irredutível a todo o conhecimento, indomável por qualquer técnica – uma escuridão que tentarei abordar através de dois quadros, aqui propostos como um díptico. O quadro do levantamento e o quadro da queda.

No primeiro volante, a infinidade negra começa por ser uma ferida: apontada pelo dedo indicador de Tomé (ou de Tomás: é o mesmo nome), ela torna-se também o olho da pintura onde cada um de nós se vê observado – e ferido. (...) Ao mesmo tempo, significa também que este vazio é um oco na existência, onde cada um pode decerto melancolicamente afundar-se mas que nos oferece a possibilidade de renascer. Ou seja, de fazer a experiência de um outro (de um segundo) nascimento na própria morte – aquilo a que se poderá chamar a existência poética (ou mística).



DEUS EXANGUE

(Caravaggio e a Ressurreição)


1

(...) Refiro-me ao episódio conhecido como a "incredulidade" do apóstolo Tmé que foi convidado pelo próprio Jesus a tocar no seu corpo ressuscitado. A minha hipótese consiste, portanto, em desenhar uma charneira entre as duas cenas, uma linha que tentarei desdobrar por toques sucessivos, se posso dizê-lo assim. Como é que a interdição de tocar e o convite para tocar (o mesmo corpo, ou seja, o corpo ressuscitado) nos dão a pensar em conjunto, sem contradição, a incrível presença, eis o ponto a elucidar. Pois este ponto é identicamente, como Jean-Luc Nancy gostava de dizer, o ponto onde o toque já não toca, o ponto onde a mão já não agarra – em suma, onde toda a possibilidade de crença falha (ou pelo menos começa a falhar). E é a arte – o gesto de um artista – que no-lo vai mostrar, conduzindo o nosso olharaté ao ponto em que a narrativa bíblica se silencia: ao toque de Tomé.


3

(...) Um Deus de carne e sangue não é uma superfície corporal meramente visível: é uma profundidade que se pode afagar, tocar e até penetrar. É uma abertura tangível no mundo. Ora, se o episódio de Tomé vem depois da encarnação e da morte de Cristo, se ele significa a ansiosa busca de provas da Ressurreição, então "Tomé" é o nome de uma demanda única: deve poder tocar-se no corpo inmortal. Tocar na imortalidade.


6

Más há algo mais decisivo ainda. Quer Tomé lhe tenha tocado ou não, pouco importa no fundo: este apóstolo designa a im-possibilidade de tocar no corpo divino. De duas maneiras, somos confrontados com o intocável (ou seja, com a estrutura geral de sagrado): na narrativa bíblica, através de uma acção suspensa, na pintura, como iremos ver através de um gesto que deixa intacto o corpo de Cristo. Com a sua demanda única, Tomé assinala-nos que a verdadeira prova da presença divina no mundo é uma ausência ou um ter-se ausentado. Deste modo, não há qualquer contradição entre o "não me toques" dirigido a Maria Madalena e o "toca-me" exigido de Tomé: ambos convergem para o limite onde o tocar se desvanece – onde se experiencia, como escreveu Nancy, "a distância intrínseca do toque". Pela minha parte, acrescentarei que Tomé enuncia, através do seu desejo, a verdade da mística: a experiência de tocar no mistério a perder de tacto (como dizemos "a perder de vista"). Tocar o intocável, ver que (não) se vê nada, afundando-se perdidamente na superficie do mundo. De uma maneira ou de outra, Tomé representa o toque que se perde ele próprio ou de si próprio: que não se consuma ou que se desvia ao consumar-se.


7

Avanço, por tanto, a hipótese de qie o branco textual, no relato evangélico, não é acidental: pelo contrário, a suspensão narrativa é um sinal – um sinal silencioso – endereçado à própria natureza so corpo ressuscitado. Deus fez-se carne, esvaziou-se em Cristo (é a kenosis), mas o próprio Cristo, ao morrer, mostra que o corpo ressuscitado é apenas um abismo neste mundo. O vazio crístico é o desnudamento quenótico, se assim posso dizer, de Deus. Cristo é o esvaziamento de Deus. O vazio do túmulo anuncia que o corpo de Cristo é em si mesmo um vazio.


8

Poucos pintores enfrentaram esse vazio. Embora haja um número considerável de pinturas que figuram o toque entre os dois corpos, raras são as cenas em que o próprio vazio é figurado (como nessa espantosa têmpera sobre madeira de Giovanni di Francesco Toscani, pintada cerca de 1419, onde dois dedos de Tomé parecem acariciar uma ausência carnal, que por sua vez é desvelada por um rasgo vertical no tecido esbranquiçado de Cristo). O episódio de Tomé parece oferecer a ocasião para levar a pintura ao seu próprio limite, abrindo-a a uma dupla impossibilidade: uma cegueira (o obscuro da carne) e uma tensão escultórica (a profundidade do corpo). Como se a pintura, no seu limite, só nos permitisse ver um toque; ou como se o pintor – identificando-se com Tomé – pintasse com os olhos na ponta dos dedos e, sobretudo, no seu dedo indicador. Um pintor de algum modo cego (renunciado a ver para além do vazio) e um pintor que talha corpos através da matéria pictórica (a luz), eis o singular desafio que a incredulidade coloca à pintura, a menos que a vontade de acreditar prevaleça sobre a suspensão de toda a crença a de toda a consolação.


9

O pintor que mais se expôs a esta suspensão foi Caravaggio, pintado A incredulidade de São Tomé cerca de 1603 (daí, sem dúvida, a imensa repercussão deste quadro na história da arte e, em particular, na tradição iconográfica de Tomé). Aí, onde a cena bíblica ficou suspensa, Caravaggio introduz um gesto cru, quase cruel, de certa maneira obsceno, não para preencher com falsa certeza a palavra evangélica, mas pelo contrário: para abrir-la sempre e infinitamente. (...) Tudo se passa como se a arte (a arte de Caravaggio) tivesse posto em cena – e diante da cena – o que, na narrativa, foi canonicamente deixado fora de cena. Tudo se passa, com efeito, como se a arte abrisse a religião a si própria, ao se a arte abrisse a religião a si própria, ao seu próprio mistério, assumindo a fundo místico da religiosidade. (...)


10

Há, desde logo, os olhares de todos os discípulos (João, Pedro e o próprio Tomé) convergindo para o ponto central da composição: o dedo indicador de Tomé que entra na ferida ao mesmo tempo que a visão do Ressuscitado se concentra unicamente na sua própria mão, segurando e conduzindo o pulso do incrédulo (como se este último, justamente, fosse cego). Mas esta convergência de olhares não é de todo esquemática: é envolvida pela plasticidade dos quatro corpos que são como que curvados por uma invisível mas omnipresente espiral de Fibonacci, tanto mais vertiginosa quanto nasce na fenda obscura do corpo crístico. A origem da composição é assim o toque Tomé – cujos efeitos visuais se propagam como as ondas de um sismo (percorrendo todas as posturas até às dobras da roupa, até às rugas na testa dos apóstolos). A importância deste ponto vertiginoso é inevitavelmente acentuada pelo chamado "tenebrismo" de Caravaggio: um fundo vazio e quase inteiramente negro do qual os apóstolos (todo vestidos de vermelho) emergem à luz de uma fonte situada à esquerda do quadro, junto a Cristo, ele próprio parecendo não ser mais do que um corpo incandescente com a sua pele lívida (e envolto numa mortalha branca). (Se houve um pintor, antes de Cézanne, que inventou uma luz propriamente pictural, ou seja, uma incandescência, uma luz imanente ao quadro, esse pintor é Caravaggio. O que tentei mostrar noutro lugar sobre Cézanne, nomeadamente que a dita "incandescência" é o meio pictórico pelo qual a nossa tradição pensou a ressurreição do corpo, aplica-se de forma particularmente aguda a esta pintura de Caravaggio, que se propôs a si próprio a tarefa de dar a ver o intocável do ressuscitado. É certo que Caravaggio modela ainda, a seu modo cortante, os corpos em vez de os "modular" [é uma palavra de Cézanne], mas o facto é que a luz caravaggesca já é intranatural – luz que emana do interior de cada corpo, ele próprio pensado, novamente nos termos de Cézanne, como um pouco "de calor solar armazenado": "uma recordação de sol", sendo este último, por sua vez, concebido como o pintor do Universo.)


11

Olhares inclinados e gestos irrompendo das trevas: tudo concorre para a estranha impressão de que testemunhamos uma acção secreta, a acção inominada ou inominável pela Bíblia: a que se desenrola numa cave, ou mesmo numa cripta. Devemos esta intuição a Louis Marin, que caracteriza o espaço negro de Caravaggio como "espaço arcaniano" (em oposição ao "espaço branco de Poussin, espaço arcadiano"). Martin retira duas conclusões decisivas, primeiro quanto ao "fundo negro" dos quadros de Caravaggio, como se ele tivesse escrito tendo diante de si esta pintura precisa (assim como Olivier Cheval já observou): "O fundo é, no limite, a própria superficie do quadro. Como consequência, a projecção do feixe de luz no plano do cuadro deixa à disposição das figuras apenas o bordo extremo da superficie, a primeira linha do quadro: o chão da cena é um proscénio e as figuras são continuamente esmurradas para a frente, quase como se estivéssemos a lidar com figuras em relevo numa parede sólida, parede do túmulo arcaniano". As figuras são puxadas para a frente em conjunto com o fundo que emerge. Como se Tomé e os seus irmãos tivessem violado um túmulo a fim de testemunhar a milagrosa anastasis. Mas a segunda consequência é talvez, relativamente a Tomé, ainda mais impressionante: baseando-se numa passagem da Dioptrique de Descartes (que compara o movimento instantâneo da luz com a vara de um cego), Marin escreve: "O raio de luz de Caravaggio, o seu olhar gera imagem: gera a imagem cartesiana do bordão do cego, é um raio que cega; tem a consistência "energética" do bordão. É uma bordoada no olho". Ora, nesta pintura, o bordão do cego é o próprio braço de Tomé que deve ser conduzido, aqui, para tocar na noite cintilante de Cristo. É portanto a mão de Cristo (a luz) que guia o dedo de Tomé no escuro. Mais: se é verdade que, como ainda diz Marin, "o gestuário caravaggesco regredirá ao gesto "original", único, da indicação", então pode dizer-se que o quadro A Incredulidade de São Tomé condensa hiperbolicamente a arte de Caravaggio: o dedo indicador aponta para a fonte obscura da luz. (...)


12

Nesta cena, tudo se dispõe para iluminar o coração das trevas. O dedo de Tomé é um pincel de luz que indica o ponto onde a pintura (qualquer pintura) nos olha – e nos cega. A ferida aberta no corpo de Cristo designa, a este respeito, o olho da pintura: o ponto onde cada observador se vê a si próprio como um vidente. No fundo da imagem, há o olho de um morto, o olho divino que nos faz ver. Pois o negro, aqui, não envolve apenas as figuras: aponta para o toque entre o indicador de Tomé e a chaga de Cristo. O negro impalpável é o corpo de Cristo ressuscitado. Dir-se-ia então que as trevas estão a ser apontadas (com o dedo); dir-se-ia até que esse indicador mostra aquilo a que chamo, no Prólogo, "a noite do mundo" (no ausência definitiva do divino). Dir-se-ia enfim que Caravaggio põe, definitivamente, o dedo na ferida (da nossa história).


13

Do mistério não se pode tirar a menor prova, apenas se pode prová-lo. Tocar no intocável significa, então, exactamente isto: não a impossibilidade de tocar numa presença que estaria fora de alcance, mas tocar no distanciamento que é próprio de toda a presença. Sim, este ausentar-se não é para tocar, "pois é ele, e só ele, que nos toca no mais vívido: no ponto da morte". Tomé não pôde, como qualquer um de nós, tocar no corpo imortal: ele deixou-se tocar pela imortalidade através de uma ferida para sempre aberta. Tomé ensina-nos que a imortalidade é incorporal.


14

Um detalhe, aparentemente anódino, acentua, por contraste, esse ponto onde se joga tanto um fim quanto um começo. Este detalhe encontra-se na parte superior da camisa de Tomé: a manga está descosida. Habitualmente, os comentários contentam-se em atribuir a tal rasgão uma intencionalidade realista, uma intensificação do carácter humano e a aparência cansada dos apóstolos: todos estão privados das suas auréolas, de resto, e as mãos de Tomé. calejadas, parecem condensar todo o labor terrestre. São mortais – muito simplesmente. No entanto, para além desta verdade realista, parece-me que o rasgão na roupa de Tomé responde também – e muito rigorosamente – à abertura na carne de Cristo. A pintura de Caravaggio é também este prodígio: mostra uma dupla ostentatio vulnerum (uma dupla exposição das feridas). Colocadas exactamente no mesmo nível da composição, dir-se-ia que cada uma das aberturas é o reverso da outra antes de tudo, a chaga abre-se horizontalmente (como se significasse a horizontalidade do túmulo), enquanto o rasgo corre verticalmente ao longo da costura (acentuando a atitude de Tomé); cromaticamente, a pele iluminada de Cristo delimita um buraco incolor, enquanto podemos vislumbrar, através do tecido vermelho de Tomé, a palidez da sua pele; por fim, se a primeira fenda desaparece na profundidade da tela, a segunda reaparece à superficie. Esta dupla ostentação assinala, na realidade, a mesma vulnerabilidade: ou seja, não o corpo glorioso contra o corpo mortal, nem a vida imortal contra a morte, mas duas aberturas que respondem uma à outra e mostram "uma outra vida na e da morte". Aproximemo-nos, então, um pouco mais da tela para sondar este prodígio.


15

A mesma vulnerabilidade: Caravaggio mostra-nos um Tomé que é o duplo de Cristo: ambos são o duplicado de todo e qualquer ser humano. Ambos são um morto-vivo, um morto em vida, ou, antes, um morto de vida. Cristo é o morto – a profundidade insondável da morte, a figura do inaproximável, muito próxima; Tomé, esse, é o vivo inteiramente exterior (como a sua roupa rasgada revelando apenas uma outra superficie, a da sua pele). O morto abre-se ao vivo que entra na morte como no seu próprio mistério. (...)


16

Aproximamo-nos aqui da charneira que liga e separa Maria Madalena e Tomé. Pois, para além da aparente contradição (entre a interdição de tocar e o convite para tocar), podemos observar a profunda convergência sobre a verdade do corpo ressuscitado. (...) Tomé entra em Cristo como na sua própria morte – o que lhe devolve a vida ou lhe dá toda uma outra vida. O corpo carnal não se opõe ao corpo glorioso: eles são o mesmo separado de si e na separação que só a tela permite ver. A pintura distende a dobra, o rolo ou o volumen bíblico; ela torna visíveis as entrelinhas silenciosas da narrativa. Decerto, se se dobrasse verticalmente em dois a tela do incrédulo, deslocando ligeiramente a linha mediana para a esquerda, sobrepor-se-ia assim uma cruz, o próprio sinal da crucificação. No entanto, a pintura não é precisamente dobrável, a sua operação reside toda no desdobramento dos corpos, na distensão das superficie ou, ainda, naquilo a que Nancy gostava de chamar "expeausition" (este termo aparecendo pela primeira vez em Corpus). O pintor (Caravaggio) cinde o morto-vivo, não faz passar um pelo outro: o vivo não supera dialecticamente aqui o morto, o sobrevivente é o morrente aberto de par em par ao seu mistério.


17

(...) A arte mostra a fenda que é o ser, a diferença entre a vida e a morte que propriamente não é nada – nada de palpável, apresentável ou permutável, mas que nos atravessa e da qual temos por vezes a sensação de atravessar ao de leve: a perder de vista e até a perder de tacto. 


18

(...) A "arte" designaria então o verdadeiro, o único nome da ressurreição não religiosa: da insurreição de corpos imortais. Direi ainda de outra maneira, argumentando que a arte e a religião têm uma matriz comum a que se pode chamar "mística" – no sentido estrito: a relação com o mistério, com o que não se coisifica em tudo o que é. A obra de arte vela pelo mistério a ponto de torná-lo a sua condição de possibilidade mais precisa.


19

O corpo divino é o incorporal dos corpos, a diferença íntima de cada corpo morrente/vivente. Esta diferença ganha corpo na arte: o corpo divino é a obra de arte – e não há outro. Ou, melhor, sim, existem alguns outros: os corpos amados – aqueles que tocamos como se aí aflorássemos a própria ferida que é a vida. A ferida a que nos abrimos, por amor.


20

Esta ferida não é, portanto, um vazio abstracto ou uma cavidade escavada numa matéria espessa: é a própria matéria formando-se, transformando-se. O vazio que o cristianismo, no extremo da nossa história religiosa, acaba por assumir identificando-o com o corpo crístico é o excesso da matéria sobre si mesma, a forma da matéria sobre si mesma, a forma da matéria que não cessa de sair de si mesma. O que é um artista? Alguém que lança os seus dedos nessa abertura, na fresta do tempo. Alguém que escolhe uma matéria qualquer ou, antes, que é escolhido por ela quando ainda não viu nem ouviu nada, apenas andamentos sussurros, arroubos e ritmos. O artista tacteia no escuro e no silèncio, por toques sucessivos, dando forma ao desconhecido. O artista é um místico material. O seu antepassado (cristão) chama-se "São Tomé". O artista que pinta tem como instrumento um bordão de cego; aquele que escreve sonda com uma agulha o rumor entre as palavras. "Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isco: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde oisco, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. (...)


21

(...) Ora, aquilo a que chamei  a "dupla ostentação" das feridas no quadro de Caravaggio, a horizontal no corpo de Cristo e a vertical na roupa de Tomé, encontra antecedentes marcantes nessa mesma iconografia, especialmente na figuração da chaga: no século XIV, esta começou a ser pintada isoladamente, assemelhando-se a uma vagina aberta (um exemplo espantoso figur no Psautier de Bonne de Luxembourg, onde se pode ver uma fenda vermelha ocupando verticalmente a iluminara); um século mais tarde, a chaga volta à posição horizontal: espécie de boca que parece convidar os fiéis a um beijo piedoso (de acordo com os tratados devocionais da época). Se esta tradição iconográfica é retomada ou desenvolvida, inconscientemente ou não, por Caravaggio, o facto é que o quadro A Incredulidade de Sao Tomé a torna literalmente exangue.


22

(...) Eis o que há mais perturbante nesta tela: o corpo ressuscitado não anula o corpo mortal – pelo contrário, é ele, crsito, que nos obriga a assumir a mortalidade, segurando-nos a mão para indicar que não há mais nada nem ninguém para incorporar. Cristo não é – ou já não é – uma substância regeneradora: é o vazio que cada humano traz em si.


23

Hoc est corpus meum = esta é a minha chaga = esta é a tua morte e a tua verdadeira vida. "Deus" é apenas a ferida incicatrizável dos humanos.


24

(...) A morte é a distância infinita aqui mesmo, e quando essa distância se experiencia no outro ou com o outro, chama-se amor.


25

A não-distância na distância infinita. (...) Fazer amor é fazer esse vazio com alguém. Ou entÑao é um corpo-a-corpo com um vazio comum. O orgasmo é a kenosis humana – a única kenosis.


26

O mísitico ateu (para dizê-lo com Bataille) é aquele que experiencia a separação de si mesmo: a separação pela qual se morre e se nasce constantemente para o mundo. É aquele que se despoja de si próprio e vive inteiramente no dom – nem mesmo de "si", mas da vida/da morte que lhe foi dada. O místico passa esse dom, transita nessa passagem e aí perde o seu toque. A obra é a forma eterna e transitiva desse dom.


27

A ferida incicatrizável ou incurável podemos chamar trauma – no sentido mais activo do termo ( e muito para além da sua significação freudiana): é esse trauma que nos constitui como humanos. (...)


29

Esta ferida – indissociavelmente corporal e espiritual (é mesmo, como se terá compreendido, a fenda que une e separa o corpo do espírito) –, tal ferida é a fonte da beleza. Ou, mais exactamente, daquilo que na arte está para além da beleza (classicamente entendida como simples adequação entre uma ideia e a sua expressão). Este para-além da beleza é o que, na obra, nos toca e até nos fere – perdidamente. Sublimemente. (...)


30

No final do seu livro, Jean-Luc Nancy escreve (referindo-se ao pintor, em geral, do Noli me tangere): "O pintor que pinta as mãos estendidas de Maria, pintando assim as suas próprias mãos estendidas para o seu quadro – para o toque justo, feito de paciência e de sorte, feito de um afastamento vivo da mão que o pousa – este pintor que nos entrega a sua imagem para que não a toquemos, para que não a retenhamos numa percepção; mas, pelo contrário, para que recuemos até voltar a pôr em jogo toda a presença da e na imagem, este pintor põe em obra a verdade da "ressurreição": a aproximação do ter-partido, no fundo da imagem, do singular da verdade". Deste modo, este outro pintor também põe em obra a ressurreição dos corpos: Caravaggio pintou o seu próprio dedo de cego na extremidade da mão de Tomé. Ele indica: isto é a pintura, a arte dos corpos ressuscitados.


Tomás Maia

A noite do mundo

Jean-Luc Nancy no Atelier de Caravaggio




PRÓLOGO
(La Noche del Mundo)


«La imagen se preserva en el tesoro del espíritu, en la noche del espíritu; es inconsciente, es decir, no necesita exponerse como un objeto ante la representación. El ser humano es esa noche, esa nada vacía que contiene todo en la simplicidad de esa noche: una riqueza de representaciones, de imágenes infinitamente múltiples, ninguna de las cuales le viene precisamente a la mente ni existe como presente. Es la noche, el interior de la naturaleza, lo que aquí está —puro sí— en representaciones fantasmagóricas; es la noche que nos rodea: aquí aparece de repente una cabeza ensangrentada, allí otra silueta blanca, y ambas desaparecen también de pronto. Es esta noche la que se revela cuando se mira a un hombre a los ojos: sumergimos nuestra mirada en una noche que se torna terrible; es la noche del mundo que avanza hacia cada uno.»

Este texto fulminante de Hegel describe la imaginación del Yo, es decir, la acción que sucede a la intuición (en el sentido hegeliano del término: la inmediatez de la relación con los objetos). En la imaginación, el objeto ya no está presente como ente, y lo que queda de esa presencia —un residuo que solo existe para el Yo— se llama «imagen». Dos rasgos emergen entonces de esta caracterización de la fuerza imaginativa como acción propiamente humana: el primero indica que la imaginación es una noche, siendo el propio ser humano definido como «la noche del mundo». Tal noche es el «ser para sí», la noche que cae en pleno día, donde las cosas solo aparecen para desaparecer. El segundo rasgo concierne a estas apariciones seguidas de desvanecimientos súbitos y revela el hecho de que el desaparecer —que puede ser interminable sin convertirse en objeto— es la causa del pavor o de la inquietud del Yo (la inquietud de lo negativo…). Por eso Hegel afirma que podemos entrever esa noche cuando miramos a un ser humano «a los ojos»: entonces no vemos ningún objeto representado, sino el fondo inobjetivo e inobjetivable de todas las imágenes (lo que Jean-Luc Nancy llamará, con total precisión, «el fondo de las imágenes»). Noche terrible o pavorosa (furchtbar) porque lo que vemos, en lo más profundo de una mirada, es que la imaginación no tiene fondo. Allí entrevemos una pura nada. (…)

Ahora bien, el arte es imaginación y trabajo: la imagen que se convierte en objeto requiere un ser dotado de memoria y, por tanto, de lenguaje. Pero el arte tiene la particularidad de no estabilizar el movimiento del Yo (pensado primariamente como noche del desaparecer). Una vez puestas en el mundo, las cosas artísticas no dejan de ser depuestas, de retirarse del mundo —o mejor: el arte es la objetivación del ritmo de la de-posición (aquello en lo que consiste el propio tiempo). Las imágenes y los objetos artísticos, en su propia aparición, remiten constantemente a esa noche en la que las cosas desaparecen (o, como veremos, a la noche en la que aún nada había aparecido). (…)

Y esto me lleva directamente a proponer que en cada imagen (artística) se busca ver el fondo de otra mirada y, más exactamente, ser visto por un ausente (al argumento al que, o al menos a uno análogo, nos conduce Nancy en su comentario sobre el ejemplo heideggeriano de la máscara mortuoria, propuesto por el propio Heidegger en su análisis del esquematismo kantiano). El arte propone objetos que deshacen la objetividad del mundo. En este sentido, el arte visual, y particularmente la pintura, es la imaginación —en el sentido estricto: el poner-en-imagen— de la noche del mundo tal como Hegel la concebía: una apertura sin fondo y sin fin en la intimidad del ser humano. (…) Luz que existe solo para iluminar, no este o aquel objeto, sino la oscuridad donde todo aparece y desaparece. Luz que nos hace ver, en suma, el origen de todo —que no cesa de retirarse. Como propondré en Deus occidens, la luz del arte (de la pintura) es como una luz de presencia: a través de ella cuidamos la noche que nos habita o, mejor, que nos acecha. Y parece que Caravaggio vino al mundo no para destruir la pintura (como sostenía Poussin), sino para exponernos la noche que somos. La mayoría de sus grandes pinturas están, de hecho, bañadas en una atmósfera nocturna que evidentemente no es natural: una noche incandescente en el seno de la naturaleza y del mundo. (…)

El negro de Caravaggio, en la medida en que es índice de la infinitud del Universo, nos sumerge en una representación inaudita del tiempo —o, para decirlo nuevamente con Bataille, de la «anulación del tiempo». (…)

La mística es la experiencia de lo desconocido y de lo incognoscible, la experiencia de ver que siempre hay algo incomprensible en la existencia de un todo, o incluso en la existencia del Todo. Y la mística que da a ver este incomprensible —es decir, la mística que es el arte— constituye la «potencia de extraer imágenes de esta noche o de dejarlas caer», retomando y quizá desviando el sentido de las palabras de Hegel. Puesto en imágenes por la luz del arte, lo desconocido permanece oscuro, infinito y, no obstante, visible. Caravaggio fue quizá el primer pintor en afrontar este negro irreductible a todo conocimiento, indomable por cualquier técnica —una oscuridad que intentaré abordar a través de dos cuadros, aquí propuestos como un díptico. El cuadro de la elevación y el cuadro de la caída.

En el primero, la negrura infinita comienza por ser una herida: señalada por el dedo índice de Tomás (o Tomé: es el mismo nombre), se convierte también en el ojo de la pintura donde cada uno de nosotros se ve observado —y herido. (…) Al mismo tiempo, significa también que este vacío es un hueco en la existencia, donde cada uno puede, sin duda, hundirse melancólicamente, pero que nos ofrece la posibilidad de renacer. Es decir, de experimentar un otro (un segundo) nacimiento en la propia muerte —lo que podría llamarse la existencia poética (o mística).





DEUS EXANGUE

(Caravaggio y la Resurección)



1

(...) Me refiero al episodio conocido como la "incredulidad del apóstol Tomás, que fue invitado por el propio Jesús a tocar su cuerpo resucitado. Mi hipótesis consiste, por tanto, en dibujar una bisagra entre ambas escenas, una línea que intentaré desplegar por toques sucesivos, si puedo decirlo así. ¿Cómo nos permiten pensar conjuntamente, sin contradicción, la prohibición de tocar y la invitación a tocar (el mismo cuerpo, es decir, el cuerpo resucitado) respecto a su increíble presencia? Este es el punto a dilucidar. Pues este punto es, de manera idéntica, como a Jean-Luc Nancy le gustaba decir, el punto donde el tocar ya no toca, el punto donde la mano ya no agarra –en suma, donde toda posibilidad de creencia falla (o al menos comienza a fallar). Y es el arte –el gesto del artista– quien nos lo mostrará, conduciendo nuestra mirada hasta el punto en que la narrativa bíblica se silencia: al tacto de Tomás.


3

(…) Un Dios de carne y sangre no es una superficie corporal meramente visible: es una profundidad que puede acariciarse, tocarse e incluso penetrarse. Es una abertura tangible en el mundo. Ahora bien, si el episodio de Tomás viene después de la encarnación y de la muerte de Cristo, si significa la ansiosa búsqueda de pruebas de la Resurrección, entonces “Tomás” es el nombre de una demanda única: debe poder tocarse el cuerpo inmortal. Tocar la inmortalidad.


6

Pero hay algo aún más decisivo. Haya o no haya tocado Tomás ese cuerpo, poco importa en el fondo: este apóstol designa la imposibilidad de tocar el cuerpo divino. De dos maneras nos enfrentamos a lo intocable (es decir, a la estructura general de lo sagrado): en la narrativa bíblica, mediante una acción suspendida; en la pintura, como veremos, mediante un gesto que deja intacto el cuerpo de Cristo. Con su demanda singular, Tomás nos indica que la verdadera prueba de la presencia divina en el mundo es una ausencia o un haberse ausentado. Así pues, no existe contradicción alguna entre el «no me toques» dirigido a María Magdalena y el «tócame» exigido a Tomé: ambos convergen hacia el límite donde el tocar se desvanece, donde se experimenta, como escribió Nancy, «la distancia intrínseca del toque».
Por mi parte añadiré que Tomás formula, a través de su deseo, la verdad de la mística: la experiencia de tocar el misterio hasta perder el tacto (del mismo modo que decimos «perder de vista»). Tocar lo intocable, ver que (no) se ve nada, hundiéndose perdidamente en la superficie del mundo. Sea como sea, Tomás representa el tacto que se extravía, que se pierde de sí mismo: que no se consuma o que se desvía en el mismo acto de consumarse.


7

Avanzo, por tanto, la hipótesis de que el blanco textual del relato evangélico no es accidental: por el contrario, la suspensión narrativa es un signo —un signo silencioso— dirigido a la propia naturaleza del cuerpo resucitado. Dios se hizo carne, se vació en Cristo (es la kénosis), pero el propio Cristo, al morir, muestra que el cuerpo resucitado no es sino un abismo en este mundo. El vacío crístico es el desnudamiento kenótico, si puedo decirlo así, de Dios. Cristo es el vaciamiento de Dios. El vacío del sepulcro anuncia que el cuerpo de Cristo es en sí mismo un vacío.


8

Pocos pintores se han enfrentado a ese vacío. Aunque existe un número considerable de pinturas que representan el toque entre ambos cuerpos, raras son las escenas en las que el propio vacío está figurado (como en esa asombrosa témpera sobre madera de Giovanni di Francesco Toscani, pintada hacia 1419, donde dos dedos de Tomás parecen acariciar una ausencia carnal que a su vez se revela por un desgarrón vertical en el tejido blanquecino de Cristo). El episodio de Tomás parece ofrecer la ocasión de llevar la pintura a su propio límite, abriéndola a una doble imposibilidad: una ceguera (lo oscuro de la carne) y una tensión escultórica (la profundidad del cuerpo). Como si la pintura, en su límite, solo nos permitiera ver un tacto; o como si el pintor —identificándose con Tomás— pintara con los ojos en la punta de los dedos y, sobre todo, en su dedo índice. Un pintor de algún modo ciego (renunciando a ver más allá del vacío) y un pintor que talla cuerpos mediante la materia pictórica (la luz). He aquí el desafío singular que la incredulidad plantea a la pintura, a menos que la voluntad de creer prevalezca sobre la suspensión de toda creencia y de toda consolación.


9

El pintor que más se ha expuesto a esta suspensión fue Caravaggio, que pintó La incredulidad de Santo Tomás hacia 1603 (de ahí, sin duda, la inmensa repercusión de esta obra en la historia del arte y, en particular, en la tradición iconográfica de Tomás). Ahí, donde la escena bíblica permanece suspendida, Caravaggio introduce un gesto crudo, casi cruel, en cierto modo obsceno, no para llenar con falsa certeza la palabra evangélica, sino al contrario: para abrirla siempre e infinitamente. (…) Todo sucede como si el arte (el arte de Caravaggio) hubiera puesto en escena —y frente a la escena— aquello que, en el relato, quedó canónicamente fuera de escena. Todo sucede, en efecto, como si el arte abriera la religión a sí misma, a su propio misterio, asumiendo el trasfondo místico de la religiosidad. (…)


10

Están, desde luego, las miradas de todos los discípulos (Juan, Pedro y el propio Tomás) convergiendo hacia el punto central de la composición: el dedo índice de Tomás que entra en la herida, al mismo tiempo que la visión del Resucitado se concentra únicamente en su propia mano, que sujeta y guía la muñeca del incrédulo (como si este último fuese, precisamente, ciego). Pero esa convergencia de miradas no es en absoluto esquemática: queda envuelta por la plasticidad de los cuatro cuerpos, curvados como por una espiral invisible pero omnipresente —una espiral de Fibonacci— tanto más vertiginosa cuanto que nace en la hendidura oscura del cuerpo crístico. El origen de la composición es así el tacto de Tomás, cuyos efectos visuales se propagan como ondas sísmicas (recorriendo todas las posturas hasta los pliegues de la ropa, hasta las arrugas de las frentes apostólicas). La importancia de este punto vertiginoso se acentúa inevitablemente por el llamado “tenebrismo” de Caravaggio: un fondo vacío y casi enteramente negro del cual emergen a la luz los apóstoles (todos vestidos de rojo) a partir de una fuente situada a la izquierda del cuadro, junto a Cristo, que parece no ser otra cosa que un cuerpo incandescente con la piel lívida (y envuelto en un sudario blanco). (Si hubo un pintor, antes de Cézanne, que inventó una luz propiamente pictórica —es decir, una incandescencia, una luz inmanente al cuadro— ese pintor es Caravaggio. Lo que intenté mostrar en otra parte sobre Cézanne —a saber, que la llamada “incandescencia” es el medio pictórico mediante el cual nuestra tradición ha pensado la resurrección del cuerpo— se aplica de manera particularmente aguda a esta pintura de Caravaggio, que asumió la tarea de dar a ver lo intocable del resucitado. Es cierto que Caravaggio aún modela los cuerpos —a su modo cortante— en lugar de “modularlos” (es una palabra de Cézanne), pero lo cierto es que la luz caravaggesca es ya intranatural: luz que emana del interior de cada cuerpo, concebido, nuevamente según Cézanne, como un poco de “calor solar almacenado”: “un recuerdo de sol”, siendo este último, a su vez, el pintor del Universo).


11

Miradas inclinadas y gestos irrumpiendo desde las sombras: todo contribuye a la extraña impresión de que somos testigos de una acción secreta, la acción innombrada o innombrable por la Biblia: aquella que se desarrolla en una cueva, o incluso en una cripta. Debemos esta intuición a Louis Marin, quien caracteriza el espacio negro de Caravaggio como un “espacio arcaniano” (en oposición al “espacio blanco de Poussin, espacio arcadiano”). Marin extrae dos conclusiones decisivas. La primera, respecto al “fondo negro” de los cuadros de Caravaggio, como si él hubiera escrito teniendo delante de sí esta pintura precisa (tal como ya observó Olivier Cheval): “El fondo es, en el límite, la propia superficie del cuadro. Como consecuencia, la proyección del haz de luz en el plano del cuadro deja a disposición de las figuras solo el borde extremo de la superficie, la primera línea del cuadro: el suelo de la escena es un proscenio y las figuras son continuamente empujadas hacia adelante, casi como si estuviéramos tratando con figuras en relieve sobre una pared sólida, pared del túmulo arcaniano”. Las figuras son arrastradas hacia adelante junto con el fondo que emerge. Como si Tomás y sus hermanos hubieran violado un sepulcro para ser testigos de la milagrosa anástasis. Pero la segunda consecuencia es quizás, en relación con Tomás, aún más impresionante: basándose en un pasaje de la Dioptrique de Descartes (que compara el movimiento instantáneo de la luz con el bastón de un ciego), Marin escribe: “El rayo de luz de Caravaggio, su mirada genera imagen: genera la imagen cartesiana del bastón del ciego, es un rayo que ciega; tiene la consistencia ‘energética’ del bastón. Es un bastonazo en el ojo”. En esta pintura, el bastón del ciego es el propio brazo de Tomás que debe ser conducido, aquí, para tocar la noche centelleante de Cristo. Es, por tanto, la mano de Cristo (la luz) la que guía el dedo de Tomás en la oscuridad. Además: si es cierto que, como dice Marin, “el gestuario caravaggesco regresará al gesto ‘original’, único, de la indicación”, entonces puede decirse que el cuadro La incredulidad de Santo Tomás condensa de manera hiperbolizada el arte de Caravaggio: el dedo índice señala la fuente oscura de la luz.


12

En esta escena, todo se dispone para iluminar el corazón de las tinieblas. El dedo de Tomás es un pincel de luz que señala el punto donde la pintura (cualquier pintura) nos mira —y nos ciega. La herida abierta en el cuerpo de Cristo designa, a este respecto, el ojo de la pintura: el punto donde cada observador se ve a sí mismo como un vidente. En el fondo de la imagen, está el ojo de un muerto, el ojo divino que nos hace ver. Pues el negro, aquí, no envuelve solo las figuras: apunta hacia el contacto entre el índice de Tomás y la llaga de Cristo. El negro impalpable es el cuerpo de Cristo resucitado. Se podría decir, entonces, que las tinieblas están siendo señaladas (con el dedo); se podría incluso decir que ese índice muestra aquello que llamo, en el Prólogo, “la noche del mundo” (en la ausencia definitiva de lo divino). Se podría finalmente decir que Caravaggio pone, definitivamente, el dedo en la herida (de nuestra historia).


13

Del misterio no se puede extraer la menor prueba, solo se puede experimentarlo. Tocar lo intocable significa, entonces, exactamente esto: no la imposibilidad de tocar una presencia que estaría fuera de alcance, sino tocar la distancia que es propia de toda presencia. Sí, este ausentarse no es para tocar, “pues es él, y solo él, quien nos toca en lo más vívido: en el punto de la muerte”. Tomás no pudo, como cualquiera de nosotros, tocar el cuerpo inmortal: se dejó tocar por la inmortalidad a través de una herida para siempre abierta. Tomás nos enseña que la inmortalidad es incorpórea.


14

Un detalle, aparentemente anodino, acentúa, por contraste, ese punto donde se juega tanto un fin como un comienzo. Este detalle se encuentra en la parte superior de la camisa de Tomás: la manga está descosida. Habitualmente, los comentarios se contentan con atribuir a ese desgarro una intencionalidad realista, una intensificación del carácter humano y la apariencia cansada de los apóstoles: todos están privados de sus aureolas, y las manos de Tomás, curtidas, parecen condensar todo el trabajo terrenal. Son mortales —muy sencillamente. Sin embargo, más allá de esta verdad realista, me parece que el desgarro en la ropa de Tomás responde también —y de manera muy rigurosa— a la apertura en la carne de Cristo. La pintura de Caravaggio es también este prodigio: muestra una doble ostentatio vulnerum (una doble exposición de las heridas). Colocadas exactamente al mismo nivel de la composición, podría decirse que cada una de las aperturas es el reverso de la otra: la llaga se abre horizontalmente (como significando la horizontalidad del sepulcro), mientras que el desgarro corre verticalmente a lo largo de la costura (acentuando la actitud de Tomás); cromáticamente, la piel iluminada de Cristo delimita un agujero incoloro, mientras que podemos vislumbrar, a través del tejido rojo de Tomás, la palidez de su piel; finalmente, si la primera grieta desaparece en la profundidad del lienzo, la segunda reaparece en la superficie. Esta doble ostentación señala, en realidad, la misma vulnerabilidad: no el cuerpo glorioso frente al cuerpo mortal, ni la vida inmortal frente a la muerte, sino dos aperturas que responden una a la otra y muestran “otra vida en y desde la muerte”. Acercémonos, entonces, un poco más al lienzo para explorar este prodigio.


15

La misma vulnerabilidad: Caravaggio nos muestra un Tomás que es el doble de Cristo: ambos son el duplicado de todo y cualquier ser humano. Ambos son un muerto-vivo, un muerto en vida, o más bien, un muerto de vida. Cristo es el muerto —la profundidad insondable de la muerte, la figura de lo inalcanzable, muy cercana; Tomás, en cambio, es el vivo completamente exterior (como su ropa desgarrada que revela solo otra superficie, la de su piel). El muerto se abre al vivo que entra en la muerte como en su propio misterio.


16

Nos acercamos aquí a la bisagra que une y separa a María Magdalena y Tomás. Pues, más allá de la aparente contradicción (entre la prohibición de tocar y la invitación a tocar), podemos observar la profunda convergencia respecto a la verdad del cuerpo resucitado. Tomás entra en Cristo como en su propia muerte —lo que le devuelve la vida o le otorga toda una otra vida. El cuerpo carnal no se opone al cuerpo glorioso: son el mismo, separado de sí y en la separación que solo el lienzo permite ver. La pintura distiende el pliegue, el rollo o el volumen bíblico; hace visibles las entrelíneas silenciosas de la narrativa. Ciertamente, si se doblara verticalmente a la mitad el lienzo del incrédulo, desplazando ligeramente la línea mediana hacia la izquierda, se superpondría así una cruz, el propio signo de la crucifixión. Sin embargo, la pintura no es precisamente doblable; su operación reside por completo en el desdoblamiento de los cuerpos, en la distensión de las superficies, o aún, en aquello que a Nancy le gustaba llamar “expeausition” (término que aparece por primera vez en Corpus). El pintor (Caravaggio) parte al muerto-vivo, no hace que uno pase por el otro: el vivo no supera dialécticamente aquí al muerto; el sobreviviente es el moribundo abierto de par en par a su misterio.


17

(...) El arte muestra la hendidura que es el ser, la diferencia entre la vida y la muerte que propiamente no es nada —nada palpable, presentable o intercambiable—, pero que nos atraviesa y de la cual a veces tenemos la sensación de atravesar apenas: perdiéndose de vista e incluso perdiéndose del tacto.


18

(...) El “arte” designaría entonces lo verdadero, el único nombre de la resurrección no religiosa: de la insurrección de cuerpos inmortales. Diré aún de otra manera, argumentando que el arte y la religión comparten una matriz común a la que se puede llamar “mística” —en el sentido estricto: la relación con el misterio, con aquello que no se cosifica en todo lo que es. La obra de arte vela por el misterio hasta convertirlo en su condición de posibilidad más precisa.


19

El cuerpo divino es lo incorpóreo de los cuerpos, la diferencia íntima de cada cuerpo moribundo/viviente. Esta diferencia adquiere cuerpo en el arte: el cuerpo divino es la obra de arte —y no hay otro. O, mejor, sí, existen algunos otros: los cuerpos amados —aquellos que tocamos como si allí aflorara la propia herida que es la vida. La herida a la que nos abrimos, por amor.


20

Esta herida no es, por tanto, un vacío abstracto o una cavidad excavada en una materia densa: es la propia materia formándose, transformándose. El vacío que el cristianismo, en el extremo de nuestra historia religiosa, termina por asumir identificándolo con el cuerpo crístico, es el exceso de la materia sobre sí misma, la forma de la materia sobre sí misma, la forma de la materia que no cesa de salir de sí misma. ¿Qué es un artista? Alguien que lanza sus dedos en esa apertura, en la grieta del tiempo. Alguien que elige una materia cualquiera o, más bien, que es elegido por ella cuando aún no ha visto ni oído nada, solo pasos, susurros, arrebatos y ritmos. El artista tantea en la oscuridad y en el silencio, por toques sucesivos, dando forma a lo desconocido. El artista es un místico material. Su antecesor (cristiano) se llama “Santo Tomás”. El artista que pinta tiene como instrumento un bastón de ciego; aquel que escribe sondea con una aguja el rumor entre las palabras. “Entonces escribir es el modo de quien tiene la palabra como cebo: la palabra pescando lo que no es palabra. Cuando esa no-palabra muerde el cebo, algo se ha escrito. Una vez que se ha pescado la entrelínea, se podía, con alivio, desechar la palabra.” (...)


21

(...) Ahora, aquello que he llamado la “doble ostentación” de las heridas en el cuadro de Caravaggio —la horizontal en el cuerpo de Cristo y la vertical en la ropa de Tomás— encuentra antecedentes marcados en esa misma iconografía, especialmente en la figuración de la llaga: en el siglo XIV, esta comenzó a ser pintada aisladamente, asemejándose a una vagina abierta (un ejemplo asombroso figura en el Psautier de Bonne de Luxembourg, donde se puede ver una grieta roja ocupando verticalmente la iluminación);
un siglo más tarde, la llaga vuelve a la posición horizontal: especie de boca que parece invitar a los fieles a un beso piadoso (de acuerdo con los tratados devocionales de la época). Si esta tradición iconográfica fue retomada o desarrollada, inconscientemente o no, por Caravaggio, el hecho es que el cuadro La incredulidad de Santo Tomás la hace literalmente exangüe.


22

(...) He aquí lo más perturbador de este lienzo: el cuerpo resucitado no anula el cuerpo mortal —al contrario, es él, Cristo, quien nos obliga a asumir la mortalidad, sosteniéndonos la mano para indicar que no hay nada ni nadie más que incorporar. Cristo no es —o ya no es— una sustancia regeneradora: es el vacío que cada ser humano lleva en sí.


23

Hoc est corpus meum = esta es mi herida = esta es tu muerte y tu verdadera vida. “Dios” es únicamente la herida incicatrizable de los humanos.


24

(...) La muerte es la distancia infinita aquí mismo, y cuando esa distancia se experimenta en el otro o con el otro, se llama amor.


25

La no-distancia en la distancia infinita. (...) Hacer el amor es hacer ese vacío con alguien. O bien, es un cuerpo a cuerpo con un vacío común. El orgasmo es la kenosis humana —la única kenosis.


26

El místico ateo (por decirlo con Bataille) es aquel que experimenta la separación de sí mismo: la separación por la cual se muere y se nace constantemente para el mundo. Es aquel que se despoja de sí mismo y vive enteramente en el don —ni siquiera de “sí”, sino de la vida/la muerte que le fue dada. El místico transmite ese don, transita por ese pasaje y allí pierde su toque. La obra es la forma eterna y transitiva de ese don.


27

La herida incicatrizable o incurable podemos llamarla trauma —en el sentido más activo del término (y mucho más allá de su significación freudiana)—: es ese trauma el que nos constituye como humanos. (...)


28

Termino este tramo con lo siguiente: si Caravaggio ha sido, durante siglos, un enigma —un pintor que fascina y desconcierta, que deslumbra y oscurece al mismo tiempo— es porque su obra no busca decir nada, sino mostrar la imposibilidad de decir. Toda la potencia de su pintura nace de este silencio. Un silencio que no es ausencia de sonido, sino exceso de luz. Exceso de sombra. Exceso de mundo. En Caravaggio, la imagen es un temblor: un temblor donde la visión descubre su propia ceguera. Y en ese descubrimiento —como Tomás frente al costado abierto— encuentra la verdad del arte.


29

Esta herida —indisolublemente corporal y espiritual (es, de hecho, como se habrá comprendido, la grieta que une y separa el cuerpo del espíritu)—, tal herida es la fuente de la belleza. O, más exactamente, de aquello que en el arte está más allá de la belleza (clásicamente entendida como simple adecuación entre una idea y su expresión). Ese más-allá de la belleza es lo que, en la obra, nos toca e incluso nos hiere —perdidamente. Sublimemente. (...)


30

Al final de su libro, Jean-Luc Nancy escribe —refiriéndose al pintor, en general, del Noli me tangere“El pintor que pinta las manos extendidas de María, pintando así sus propias manos extendidas hacia su cuadro —hacia el toque justo, hecho de paciencia y de suerte; hecho de un alejamiento vivo de la mano que lo deposita—; este pintor que nos entrega su imagen para que no la toquemos, para que no la retengamos en una percepción; sino, por el contrario, para que retrocedamos hasta poner nuevamente en juego toda la presencia de y en la imagen: este pintor pone en obra la verdad de la ‘resurrección’: la aproximación de lo ya ido, en el fondo de la imagen, del singular de la verdad.” Así, ese otro pintor también pone en obra la resurrección de los cuerpos. Caravaggio pintó su propio dedo de ciego en la punta de la mano de Tomás. Él señala: esto es la pintura, el arte de los cuerpos resucitados.



Tomás Maia

La noche del mundo

Jean-Luc Nancy en el estudio de Caravaggio